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'Inércia do Congresso traz riscos à democracia...

'Inércia do Congresso traz riscos para a democracia', diz Barroso.


atualizada | 22-12-2013 | 09:48:35 | JornaldoSurdo



"A inércia do Congresso traz riscos para a democracia. E proteger as regras da democracia é um papel do Supremo", afirma o ministro Luís Roberto Barroso, explicando a razão de o Poder Judiciário ter começado a julgar há duas semanas se doações de empresas em campanhas eleitorais são inconstitucionais.

Em entrevista ao programa Poder e Política, da Folha e do UOL, o mais novo integrante do STF (Supremo Tribunal Federal), que tomou posse no fim de junho, diz compreender a paralisia do Congresso quando se trata de reformar o sistema político. "Há muita dificuldade de se formarem consensos. Não querem mudar a lógica do jogo que os ajudou a chegar lá", afirma.

O STF começou a julgar no início deste mês uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Se ela for aceita, serão proibidas as doações eleitorais de empresas, que hoje respondem por mais de 80% do que é arrecadado pelos candidatos.

Até agora, 4 dos 11 ministros do STF já se manifestaram a favor da proibição. O julgamento foi suspenso e será retomado no ano que vem. Barroso votou contra as doações das empresas e acha que a função principal desse julgamento é fomentar o debate sobre reforma política. "Não está funcionando, nós temos que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar", diz. "Espero que a decisão do Supremo recoloque essa questão na agenda do Congresso."

A seguir, trechos da entrevista de Barroso, concedida na quarta-feira (18), em Brasília.

Folha/UOL - O sr. é o relator do chamado mensalão tucano. Quando o caso estará pronto para julgamento em plenário?
Luís Roberto Barroso - O mais rápido que o devido processo legal permitir, em algum momento do próximo ano. Não depende só de mim. O processo está em alegações finais. É a ultima manifestação do acusado em um processo, depois de ouvidas todas as testemunhas e produzidas todas as provas. Aí o processo vem concluso para mim, elaboro o meu voto, em seguida encaminho para o ministro Celso de Mello, que é o revisor. Portanto, vai depender de eu preparar o meu voto, do ministro Celso de Mello preparar o dele, e da presidência pautar para julgar.

O prazo para as alegações finais serem apresentadas se encerra quando?
Agora no final do ano.

Após o recesso de janeiro, o sr. recebe os dados e prepara o seu voto?
Exatamente. Sou relativamente rápido. Tudo estando pronto na volta do recesso, imagino que em meados do primeiro semestre o meu voto esteja pronto.
A gente deve prever o que está sob o nosso controle. Existem outros atores importantes. Existem alguns componentes aleatórios, como a própria pauta do Supremo ao longo de 2014. Tudo que eu posso dizer é que é muito provável que o meu voto esteja pronto no primeiro semestre de 2014.

Quando o Estado consegue punir em casos mais exemplares como o do processo do mensalão, a ação penal 470, há um efeito pedagógico para a sociedade?
Existe certamente o efeito pedagógico. Evidentemente ninguém deve ser condenado para ser um efeito pedagógico. As pessoas devem ser condenadas se elas efetivamente tinham uma culpa.
A ação penal 470 superou um pouco esse caráter seletivo que historicamente caracterizou o direito penal brasileiro, que no geral só incidia sobre pessoas pobres e muito mal defendidas. Houve uma certa mudança de paradigma. Um ponto fora da curva, que foi a frase que eu disse na minha sabatina e que me assombrou ao longo do semestre. O mensalão terá feito a diferença se ele não for o que ele de fato foi, um ponto fora da curva. Ou seja, se nós mudarmos a curva e tivermos um sistema punitivo que não seja exasperado, que não seja truculento, mas que seja igualitário.

Há uma certa assimetria no cumprimento das penas do mensalão? Alguns dos 25 condenados já estão presos. Outros, não. Por quê?
Se eu achasse alguma coisa relevante sobre esse assunto eu diria internamente, e não publicamente. Essa é a minha resposta para a sua pergunta. Tenho uma postura de não fazer juízos públicos sobre votos, ou posições dos meus colegas do Tribunal. O que eu acho, digo em plenário, na turma [de julgamento] e, eventualmente, digo pessoalmente. Mas não me passaria pela cabeça criticar um colega publicamente.

O sr. foi advogado do italiano Cesare Battisti, que obteve direito de permanecer no Brasil. Agora, o norte-americano Edward Snowden, que prestava serviços para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, demonstra interesse em vir ao Brasil. O sr. vê similitudes nesse caso com o de Battisti?
Não vejo nenhum tipo de similitude, salvo um pedido de asilo ou de refúgio. Cesare Battisti era um ex-militante da extrema esquerda italiana que se refugiou no Brasil. Fugiu para o Brasil e depois obteve refúgio do governo brasileiro.
O caso do Snowden é diferente. Ele era um servidor do governo americano, salvo engano meu, acusado de traição ou alguma imputação grave. O único traço em comum que teria com o caso do Cesare Battisti é que a decisão de aceitar um estrangeiro no país é uma decisão política de governo.
Mas as circunstâncias são muito diferentes. Até porque os perigos do mundo já não são mais o comunismo que se expandia, e sim a invasão de privacidade e, às vezes, de soberania via internet. Não vejo um real paralelo nesses casos. Mas se o Brasil desse asilo a ele e eu ainda fosse advogado eu o defenderia também.

O sr. simpatiza com a causa?
Não, eu simpatizo com a defesa.

De volta ao mensalão, a ação penal 470: os embargos infringentes devem ser apreciados no ano que vem ou o sr. acha que podem até se estender mais?
Não. Para o meu gosto, teriam sido apreciados este ano ainda. Eu votei pelo cabimento dos embargos infringentes. Estou absolutamente convencido de que aquela era a solução técnica adequada. Por duas razões fáceis de demonstrar. A primeira, o regimento interno no Supremo previa expressamente os embargos infringentes nesse caso. É verdade que há uma lei posterior que não previu os embargos infringentes. Portanto, haveria uma dúvida se a lei posterior teria revogado ou não esses embargos infringentes do regimento. Mas a verdade é que o Supremo emendou o regimento muitas vezes e nunca tirou os embargos infringentes. Inúmeras decisões do próprio Supremo faziam referência a esse dispositivo do regimento. De modo que o Supremo sinalizava claramente que entendia que não tinha sido revogado. A isso se somou o fato de que, em 1998, o presidente Fernando Henrique [Cardoso] mandou uma mensagem com um projeto de lei para o Congresso para acabar com os embargos infringentes no Supremo e o Congresso, em um voto devidamente justificado, disse "não, nós queremos manter os embargos infringentes". De modo que o Executivo achava que eles subsistiam, tanto que mandou um projeto para revogá-los. O Legislativo achava que existiam, tanto que não quis revogar, e o Supremo tinha diversas decisões se referindo a embargos infringentes.
Sem nenhum clima de paixão, numa decisão puramente técnica, eu acho que os embargos infringentes cabiam [no mensalão] e acho que o Supremo faria mal se, na reta final de um julgamento emblemático como esse, tivesse produzido uma decisão casuísta para acelerá-lo sob pressão da mídia e sob pressão da opinião pública. Sofri o diabo por achar isso. Porém, a gente na vida deve fazer o que é certo e acho que isso era o que é certo.

E com relação à finalização desse caso: o sr. acredita que ao longo de 2014 seja liquidado?
Penso que sim. Todo mundo quer terminar. Tenho certeza que o relator, ministro Luiz Fux, também quer trazer a julgamento, que o presidente quer trazer a julgamento. O país precisa virar esta página. Precisamos ter uma agenda nova, uma agenda construtiva e acho que essa é uma agenda de quem está olhando para trás.

O Supremo tem se dedicado com muita frequência em todas as quintas-feiras a julgar ações penais envolvendo políticos que têm o chamado foro privilegiado. É necessário modificar essa regra?
É preciso modificar esta regra para liberar o Supremo e também por outras razões. Acho que esse foro por prerrogativa de função é um resquício não republicano da Constituição brasileira. É um resquício aristocrático de que algumas pessoas são diferentes das outras. Acho que só deveriam ter foro por prerrogativa de função pouquíssimas autoridades: o presidente da República, o vice-presidente da República, os chefes de Poder -e penso que os ministros do Supremo, para não serem julgados por um tribunal inferior, se esse fosse o caso. Fora isso, minha proposta é de uma emenda constitucional pela qual se suprimiria o foro por prerrogativa de função da maior parte das autoridades. Criariam-se na Justiça Federal de Brasília duas varas. Uma para julgar as ações penais e outra para julgar as ações de improbidade contra essas autoridades que hoje têm foro por prerrogativa de função.
Por que em Brasília? Porque a autoridade pública também precisa de um grau mínimo de proteção institucional e seria muito ruim se ela estivesse sujeita a responder uma ação em Campo Grande, ou uma ação no Oiapoque, outra ação no Recife. Para evitar essa dispersão, você concentra em uma vara, mas de primeiro grau. Teria um juiz titular para cada uma, escolhido pelo Supremo e da decisão de cada uma dessas varas caberia recurso para o Supremo, de modo que o Supremo continuaria dando a última palavra e sairia desse fronte inóspito, que ele tem dificuldade de fazer, de conduzir o processo, ouvir testemunha, fazer perícia, que atravanca a agenda do Supremo.

Tramita no Supremo um recurso da Defensoria Pública de São Paulo questionando um artigo da Lei de Tóxicos que define como crime o uso de entorpecentes para consumo pessoal. A Defensoria pede que um cidadão não seja punido por portar drogas para consumo próprio. O sr. tem opinião a respeito?
Tenho. A minha opinião é uma opinião institucional e de política pública. Primeiro lugar, talvez faça a diferença o tipo de droga.
Acho que a criminalização de drogas leves é uma má política pública. A criminalização da maconha é uma política pública equivocada. Não estou preocupado, quando falo isso, propriamente, com o consumidor. Não estou preocupado quanto de mal ela [a droga] faz. Estou preocupado com o impacto que o fato de esta atividade ser criminosa produz sobre as comunidades que são dominadas pelas pessoas que fazem o tráfico. Acho que seria uma política pública boa, ou pelo menos uma boa experiência que não produzirá nada pior do que o que a gente já tem, a descriminalização da maconha.

Essa experiência do Uruguai, por exemplo?
Essa experiência do Uruguai é um projeto piloto que a gente deve observar.
Sou do Rio de Janeiro. Há comunidades imensas no Rio, há centenas de milhares de pessoas no Rio que são reféns dos barões do tráfico. Pessoas que são oprimidas na sua liberdade de ir e vir. Pessoas que são oprimidas no direito de criar os seus filhos sem um ambiente em que o tráfico os coopte.

Descriminalizar uma droga considerada mais leve, como a maconha, resolveria o problema? O grande dinheiro dos barões do tráfico vem de outros tipos de drogas sintéticas mais complexas. Como resolver isso?
Não sou um estudioso da questão das drogas nem quero ser uma pessoa pretensiosa de ter uma solução. Sou juiz e vejo quantos casos chegam às minhas mãos de pessoas que são condenadas por tráfico, por pequenas quantidades de maconha: 100 gramas, 200 gramas, 500 gramas de maconha. O sujeito está condenado. Isso provoca um impacto extremamente negativo sobre essa juventude. Quando vai preso por 250 gramas de maconha e entra no sistema penitenciário, sai violentado, embrutecido e pronto para crimes mais graves. Do ponto de vista de uma política criminal, não teria nenhuma dúvida que descriminalizar a maconha é positivo. E a cocaína, que é uma droga potencialmente mais danosa e que produz mais dinheiro... Também no caso da cocaína a minha maior preocupação não é com o usuário, embora não me seja indiferente, é de novo com o poder que o tráfico passa a ter pela quantidade de dinheiro que arrecada. A tragédia brasileira é que para um jovem que cresce em uma comunidade dominada pelo tráfico, além dele ser cooptado, o tráfico paga a ele muito mais do que qualquer outra oportunidade de emprego formal que ele tenha.

Mas como resolver e distinguir entre o que deve ser descriminalizado e o que deveria ser mantido como crime?
Dou uma opinião limitada de um juiz em uma matéria que talvez exigisse um estudo interdisciplinar, com pessoas de diferentes especialidades. Mas quem é do ramo diz que o crack, por exemplo, desequilibra esta equação. O potencial destrutivo do crack é devastador. Portanto, deixa de ser apenas uma questão de descriminalizar a maconha, descriminalizar a cocaína. E é preciso incluir essa variável muito acessível, barata e que dizima as pessoas em pouco tempo. O país precisa de um debate sem preconceitos para saber qual é a melhor política pública. O que eu posso lhe assegurar, do meu ponto de observação, é que é uma má política pública prender dezenas de milhares de jovens por tráfico de pequenas quantidades de maconha e mesmo, eventualmente, de cocaína quando não estejam associadas a outro tipo de delinquência.

Qual é o espírito geral do STF a respeito desse tema?
Não saberia dizer.
O Supremo é um conjunto de ilhas com uma certa soberania e pouca institucionalidade. Não por culpa de ninguém, mas por culpa do sistema e como ele funciona a um tal ponto que não saberia te responder qual é a percepção geral das pessoas. Curiosamente, os ministros do Supremo debatem em plenário. Debatem ali, na frente da TV Justiça.

Isso é bom?
Já chegarei lá. Acho que já há essa percepção e outros ministros também pensam assim: era preciso haver conversas internas institucionais, de o Tribunal se repensar, de o Tribunal fazer -isso eu acho e outros colegas acham, não vou dar nomes para falar só por mim- uma revolução no modo que o Supremo opera. O Supremo julga muito, julga muita coisa irrelevante e consequentemente julga sem um nível de reflexão desejável algumas questões importantes. É preciso reduzir drasticamente o número de casos que chega no Supremo. É preciso selecioná-los por um critério de relevância. A repercussão geral, por exemplo, que foi um mecanismo processual. Como é que ela funciona: para um caso ser conhecido no Supremo é preciso que dois terços dos ministros considerem que há repercussão geral. A que o Supremo tem que dar repercussão geral? O Supremo só poder dar repercussão geral aos casos que seja capaz de julgar naquele ano, porque quando você dá repercussão geral em um caso, todos os casos idênticos ficam sobrestados na origem. O Supremo tem 400 repercussões gerais pendentes, em temas importantes. Nós estamos atravancando a Justiça do país, que não pode deixar transitar em julgado essas ações. A minha proposta radical é dar no ano que vem, como tem estoque, dar dez repercussões gerais, e vamos acabar com o estoque. Pensar em uma forma de acabar com o estoque, de modo que a primeira revolução a fazer é quantitativa, qualitativa, a gente só pode admitir o que pode julgar em um ano. Senão você fica acumulando processo. Depois é preciso mudar um pouco a dinâmica da decisão. A dinâmica hoje é, como regra geral, eu fico sabendo o que o colega que senta do meu lado acha sobre a questão que ele é relator no dia do julgamento em que ele lê o seu voto. O que acontece? Às vezes eu tive que preparar um voto que é igualzinho ao dele, de modo que perdi um tempo danado que podia gastar com outras coisas. E se eu divergir, muitas vezes, não estou preparado para construir o meu argumento divergente naquele momento, porque eu fiquei sabendo o argumento dele naquela hora. Aí eu tenho que pedir vista. Então, nós tínhamos que ter um sistema, e essa é a minha proposta interna: a pauta divulgada com 30 dias de antecedência e não com quatro, cinco dias como é hoje, para eu ter 30 dias para me preparar. E o voto do relator, ou pelo menos a conclusão do voto do relator, tem que circular uma semana antes, para eu chegar na sessão já sabendo o que ele acha, porque se for para aderir eu falo "de acordo com o relator" e se for para divergir eu já organizei os meus argumentos. A mecânica de deliberação é extremamente disfuncional. A tudo isso se soma a TV Justiça. A TV Justiça tem vantagens e desvantagens. Eu acho que as vantagens prevalecem de maneira nítida sobre as desvantagens. Quais são as desvantagens? A primeira, uma certa perda de naturalidade. No momento em que se acendeu essa luz e ligou a câmera a nossa própria conversa passa a ser menos espontânea. Isso vale para todo mundo, qualquer pessoa que está sob um holofote e uma câmera perde um pouquinho da sua naturalidade. Em segundo lugar, dificulta um pouco a construção informal de consensos -"você acha isso? Mas já pensou nisso?"- em que as pessoas trocam impressões. Ao vivo e em cores a construção do consenso é um pouco mais difícil naturalmente.

Como resolver isso?
A terceira consequência são os votos que ficaram mais compridos porque as pessoas se sentem na obrigação de dizer a que vieram. Quanto ao voto mais comprido, acho que está mudando. Já há uma nova mentalidade de votar mais curto. Qual é a vantagem? É que o Brasil é um país no qual o imaginário social supõe que por trás de qualquer porta fechada estão acontecendo tenebrosas transações. E aquela imagem ao vivo e em cores para todo o Brasil de 11 pessoas discutindo construtivamente para produzir a melhor solução é uma imagem que dá transparência. É uma imagem pedagógica de como se constrói uma decisão. Acho que a TV Justiça mudou a percepção do Judiciário. Deu transparência, deu credibilidade. De certa forma, sofisticou o debate público no Brasil. Produziu-se uma distorção, que é preciso ainda de algum tempo para avaliar, que é uma certa centralidade política do Supremo em um momento em que o Poder Legislativo vive uma crise de funcionalidade e talvez representativa. Veja esse exemplo que eu vou lhe dar. O Congresso Nacional, salvo engano em 2005, aprovou as pesquisas com células-tronco embrionárias. Permitiu que os embriões congelados que sobravam dos procedimentos de fertilização in vitro fossem destinados a pesquisas científicas se os genitores concordassem. A lei passou relativamente despercebida. Uma lei importante para o país, uma decisão ética e política importante. Porém, quando o procurador-geral da República, na época o professor Cláudio Fonteles, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a lei no Supremo, as pesquisas com células-tronco embrionárias viraram um debate público nacional. Ou seja, o debate público do Supremo teve e está tendo mais visibilidade do que o debate público no Congresso Nacional. Evidentemente isso está errado. Evidentemente não era para ser assim. O cenário por excelência do debate político é o Congresso Nacional. Daí a minha obstinação por reforma política que restitua a centralidade política ao Congresso.

Já entramos nesse tema. Ainda sobre as drogas: a posição que o sr. expressou depende, evidentemente, de ações concretas que vão chegar lá em casos objetivos que terão que ser julgados. Para o sr., prender jovens por maconha ou eventualmente até por pequenas quantidades de cocaína como se fossem traficantes não é uma boa política pública. Mas isso dependeria de mudança de lei ou já há espaço para interpretação jurídica?
A criminalização de uma conduta depende de lei, esse é um debate público que depende do Congresso. Mas para a intensidade da pena, o juiz tem um grau de discricionariedade. A condenação à pena de prisão ou a medidas alternativas o juiz tem discricionariedade. A decisão entre regime aberto ou regime semiaberto o juiz pode ter algum grau de discricionariedade.

Nesse ponto o Supremo pode atuar?
Mas o meu debate era menos jurisdicional e mais de política pública. Acho que em uma democracia nenhum tema é tabu. Tudo que está gerando problemas tem que ser objeto de debate.

O Uruguai está adotando uma nova política de liberar drogas leves -no caso, a maconha. Tem opinião sobre essa experiência?
Tenho simpatia pela experiência. Acho que a gente deve observá-la. Embora o problema do Uruguai, um país com 3 milhões de habitantes, seja completamente diferente do problema do Brasil. Se tivesse que tomar uma decisão sobre isso, precisaria de mais informação, mais debate público e mais elementos. Estou dando uma opinião informal de um observador. Para decidir a gente tem que unir mais elementos relevantes.
O Brasil é um país em que as pessoas acham muito sem terem procurado. Não sou uma dessas pessoas. Mas o Uruguai está focado no usuário e como tratar o usuário.
Quando digo que o país deve considerar seriamente a descriminalização da maconha, sem ser indiferente ao usuário, estou mais preocupado com o poder que o tráfico exerce sobre a sociedade e sobre comunidades específicas, independentemente do consumidor final.
Gostaria de terminar com o poder deletério que esse tipo de criminalidade dá a esse tipo de bandido, que se torna poderoso e rico em uma comunidade pobre. Ele vive o suposto benfeitor e coopta a juventude para o crime. Esse é o problema que está me preocupando e não a questão do usuário, que acho que é o foco no Uruguai. Nós vamos prestar atenção para ver se vai aumentar o consumo, vamos ver se as pessoas vão ficar jogadas pela rua. As duas questões são importantes, mas são focos diferentes. Do único ponto de observação que tenho, com um grau de autoridade, é como juiz, de dizer que acho ruim entupir os presídios com jovens pobres, presos com pequenas quantidades de maconha.

O sr. votou a favor de considerar inconstitucional a doação de empresas privadas para políticos em campanha eleitoral. Se as empresas forem proibidas de doarem para políticos em campanha, como deveria ser o modelo de financiamento então?
Alguém disse no julgamento: "As empresas podem legitimamente ter a sua ideologia, querer eleger um candidato, ou dar dinheiro para um partido que avança o seu modo de ver do mundo e da sociedade". Em tese, não considero inconstitucional em toda e qualquer hipótese a doação por empresa. Mas a verdade é que no modelo brasileiro não é isso que acontece.
Se você for olhar, as grandes empresas doam para o partido A, para o partido B, para o partido C ou para o candidato A, para o candidato B. Não tem nada a ver com ideologia. Elas doam ou por medo, ou porque são achacadas, ou porque querem favores.
O sistema que nós temos, que conjuga doação por empresas privadas com um sistema proporcional em lista aberta, é um sistema no qual a derrama de dinheiro produz um impacto antidemocrático e antirrepublicano.
Nós precisamos, em primeiro lugar, baratear o sistema eleitoral brasileiro. Em segundo lugar, precisamos dar um mínimo de autenticidade do sistema partidário brasileiro. E em terceiro lugar, nós precisamos de um sistema que ajude a formação de maiorias.
Presidente eleito deveria sair das urnas com uma razoável maioria de sustentação para ele não ter que negociar caso a caso, fisiologicamente, cada votação importante.
Para baratear você tem alguns mecanismos. Você tem a lista fechada, da qual há uma percepção equivocada na sociedade de que seria menos democrática do que a lista aberta. Porque o sujeito acha assim: "Mas na lista aberta eu voto em quem eu quero". É uma falsa percepção. Menos de 10% dos candidatos são eleitos com votação própria. Você vota, forma-se um quociente eleitoral para a coligação. No caso de São Paulo, quem votou no deputado Tiririca [PR], que teve uma expressiva quantidade de votos, elegeu mais três ou quatro deputados sem saber que estava elegendo. O sistema em lista aberta acaba sendo pior.
A OAB tem uma proposta que enfrenta esse preconceito contra a lista fechada: o eleitor dá um primeiro voto no partido, verifica-se quantos candidatos o partido vai fazer e depois, num segundo turno, ele vota nos nomes. Com isso você barateia as eleições.

O sr. acredita que é possível desenhar um modelo que mais adiante possa prescindir das doações diretas de empresas?
Acho que é possível desenhar um modelo que possa prescindir. Ou é até possível desenhar um modelo que a doação de empresas não tenha este impacto deletério sobre o princípio republicano e sobre moralidade pública, porque se você doa para os dois, você certamente está querendo alguma coisa.

No modelo norte-americano é proibido uma empresa doar diretamente ao candidato, ao partido. Porém, algumas janelas no modelo norte-americano com base na liberdade de expressão permitem a grupos de pessoas, inclusive empresários, formarem comitês que compram espaço no horário das televisões e fazem propaganda sobre qualquer tema. Aí favorecem candidatos. Isso nunca aconteceu no Brasil. Mas considerando-se o princípio da liberdade de expressão, se algumas empreiteiras ou bancos decidirem juntar R$ 100 milhões e fazer o mesmo haveria algum óbice legal?
Possivelmente, sim. Acho o modelo americano um desastre.

Pois é. Mas aqui qual seria a razão pela qual uma empresa não poderia comprar o horário na TV?
O modelo americano é um modelo plutocrático. É um modelo que transformou a política em um espaço dos ricos. Aí tem os ricos democratas e os ricos republicanos. Mas os Estados Unidos têm tantas coisas boas e nós temos o mau hábito de copiar as ruins. Esta é péssima. Porque eles não admitem o financiamento eleitoral direto, mas admitem a formação desses grupos cujo papel, muitas vezes, é denegrir, é desconstruir o outro da forma mais primitiva possível.
Os Estados Unidos, a grande instituição americana, essa nós não copiamos, a grande instituição americana é a universidade. De todas as grandes universidades do mundo, talvez as dez primeiras ou mais do que isso estão nos Estados Unidos. Isso nós não conseguimos fazer ainda. Um dia teremos grandes universidades. Nós copiamos as coisas erradas.
A [Suprema] Corte Americana, embora seja muito exaltada, é muito problemática. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, com todas as suas circunstâncias, é mais plural e mais sofisticado politicamente do que a Supremo Corte Americana, em que o sujeito é democrata ou republicano.

Mas o que aconteceria? No Brasil nunca aconteceu esse fenômeno dos EUA porque aqui as empresas podem dar dinheiro diretamente para os políticos. Nos Estados Unidos, esse problema chegou à Suprema Corte e foi considerado, em nome da liberdade de expressão, um direito líquido e certo de qualquer cidadão ou empresa. Aqui no Brasil, a Constituição dá o direito à liberdade de expressão. O que impediria então empresas brasileiras de fazer a mesma coisa?
Em primeiro lugar a liberdade de expressão é um direito fundamental individual, ele não se aplica a pessoas jurídicas ou pelo menos não é aplicado na mesma extensão.

Empresários como pessoas físicas dariam dinheiro e fariam esse grupo. O que aconteceria no Brasil?
Penso que teria que fazer uma interpretação teleológica do que já existe, conduziria claramente à ilegitimidade dessa prática.

O que impede o dono da padaria, o dono da oficina mecânica ou o dono da empreiteira, que ganha milhões, de darem dinheiro, montarem um grupo e comprarem um horário na TV e falar que um projeto econômico de determinado grupo político é ruim?
Porque você interpreta o direito, normalmente, pela sua teleologia, pela finalidade, pelo bem jurídico que ele está protegendo. De modo que se o Supremo declarou a inconstitucionalidade da contribuição da empresa é porque ele não quer esse protagonismo do dinheiro. Você está me lembrando um exemplo clássico do Luís Recaséns Siches, que é um autor mexicano e que esteve na Espanha, e que ele diz assim: Havia uma placa que dizia "Proibida a entrada de cão". Aí o sujeito chegou lá abraçado com um urso. Urso pode? Provavelmente, não. Na inspiração da proibição do cachorro já estava incluído o urso também. De modo que isso seria uma fraude à lei, seria uma forma de contornar uma vedação. Se vier a passar a vedação, se ela vier a ser aplicada nesse primeiro momento. O que eu espero que a decisão do Supremo provoque, se ela vier a ser nesse sentido, é o desemperramento desta agenda. A competência para fazer reforma política é do Poder Legislativo, é do Congresso Nacional.

O sr. trabalhou antes de ir para o Supremo no projeto de reforma política patrocinado pela OAB. Foi daí que resultou até nessa ação direta de inconstitucionalidade sobre doações de empresas?
Não.

Não há conexão?
Não. Fiz uma proposta para a OAB. Depois da minha, eles fizeram uma nova proposta diferente, com uma ideia que não constava na minha e que acho muito boa e original, que é essa questão do voto em dois turnos em lugar da lista fechada.
Acho que o modelo ideal é um modelo que legitime a contribuição individual, não de pessoa jurídica, combinada com o financiamento público. Mas o financiamento público só pode ser viabilizado se você baratear de maneira substancial o custo das eleições. Esse modelo de sistema eleitoral em lista aberta em que cada um corre para um lado parece um filme do Monty Python, que vi quando era jovem, em que dava-se o tiro de largada nos 100 metros rasos e corria cada um para um lado. O sistema [atual] é um pouco assim. É preciso revolucionar esse sistema e revolucionar com experiências que o mundo já pratica. Voto distrital misto, o mundo já pratica, sistema em lista fechada, a gente precisa empurrar essa agenda. É preciso fazer alguma coisa nova. Se você me perguntar qual é a solução, acho que eu não posso ter esta pretensão, nem ninguém tem a pretensão. O André Gide [escritor francês, 1869-1951] tem uma passagem feliz em que diz assim: "Acredite em quem procura a verdade, mas desconfie de quem a encontra". Portanto, a gente tem que fazer testes. Quando estive no Congresso para a minha sabatina [pela indicação para o STF], fui muito bem recebido. Tem pessoas lá que aprecio e admiro. O Congresso, pressionado pelas multidões que tinham ido para as ruas, naquele momento tinha uma reunião dos líderes discutindo. "Nós vamos fazer a reforma política, não queremos nem plebiscito, que a presidente quer, nem Constituinte exclusiva, vai sair daqui".

...
...E logo que o povo saiu da rua essa agenda foi desarticulada. Espero que a decisão do Supremo recoloque essa questão na agenda do Congresso. Mas acho que esta é uma competência política, decisão política tem que tomar quem tem voto. Agora, a inércia do Congresso traz riscos para a democracia. E proteger as regras da democracia é um papel do Supremo.

O sr. acha que o Congresso tem sido inerte por que razão nos últimos tempos?
Porque há muita dificuldade de se formarem consensos. Porque nós temos esse sistema político, esse sistema partidário. Nós temos pessoas que, compreensivelmente -faz parte da natureza humana- não querem mudar a lógica do jogo que os ajudou a chegar lá. Portanto é tudo muito difícil. A solução que a presidenta propôs era, de certa forma, engenhosa. Ou transfere diretamente para a população ou vamos transferir para um órgão distinto do Congresso. Não seria uma Constituinte, seria alguém que, por delegação do Congresso, faria uma reforma política. Seria um pouco o reconhecimento do Congresso de que "nós não estamos conseguindo fazer aqui e, portanto, vamos delegar essa competência". Mas a realidade é que nesse mundo ninguém quer delegar competência.

Agora, a propósito disso houve muita controvérsia a respeito dessa ideia de se convocar deputados ou senadores com poderes constituintes. Ainda que fosse por meio de um plebiscito. O sr. tem opinião sobre isso?
Acho que a ideia foi mal compreendida. Ou, por simplificação, de se chamar Constituinte exclusiva. Não existe isso. Uma Constituinte é soberana. Nenhuma força externa heterônoma dirá a uma Constituinte o que que ela pode ou deve fazer. Então, de Constituinte não se trata. É a primeira observação. Mas a criação de um órgão externo que, por delegação do Congresso, elaborasse o projeto...

Mas isso não vai acontecer nunca...
...Não vai acontecer nunca. Porque aí o Congresso pôs-se em brios e disse: "Eu não vou abdicar dessa competência, eu vou fazer".

Mas não fez.
O problema passou. Porque o problema passou. Isso foi uma pena, porque aquela energia cívica que foi o povo nas ruas em maio foi formidável. Atrapalhou a minha posse, como você testemunhou, mas povo na rua, mobilizado por mudança legítima, é a energia que move a história.
Quando aquilo desandou em vandalismo, nós perdemos essa energia. Porque é assim que se produzem as grandes transformações. Nós perdemos aquela energia. Mas, a gente, para fazer andar a história, não precisa estar com o povo gritando atrás. É preciso interpretar e fazê-la andar. De modo que isso foi o que disse no meu voto. Está ruim, não está funcionando, nós temos que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar.

O ideal então seria que o Congresso, à luz dessa possível decisão do Supremo, tomasse uma iniciativa e fizesse algo?
Seria o ideal. Não sei se dará tempo. Acho que há muitas dificuldades de consenso no Congresso. A única coisa que legitimaria a solução externa é você reconhecer: "Eu não estou conseguindo fazer, porque aqui na minha instituição tem tantos interesses na mesa que eu preciso que isso venha de fora". Mas ninguém quer.

Se o Congresso não correr e não fizer algo e o Supremo finalizar o julgamento dessa ação a respeito de doações de empresas, haverá tempo para aplicação da nova regra?
Havia três pedidos na ação da OAB. O primeiro é para que pessoa jurídica não pudesse participar de financiamento eleitoral. A segunda é que houvesse um teto para as pessoas físicas. E a terceira, que houvesse um teto para o autofinanciamento, para o gasto do próprio dinheiro do candidato. Quanto a essas duas, a decisão do ministro [Luiz] Fux, que eu acompanhei, dava 24 meses. Quanto à não participação de empresas, era para efeito imediato.
O ministro [Dias] Tofolli acompanhou o ministro Fux, mas disse que quanto à modulação temporal, o momento em que vai começar a viger, ainda não se manifestou. Vai esperar o avanço do debate. De modo que se houver uma perspectiva real de que o Congresso vá fazer, acho que o Supremo deve ser deferente...

Estabelecer um prazo...?
É difícil estabelecer um prazo. Primeiro porque o Congresso não cumpre, você desmoraliza a decisão. E nem sei se é próprio ficar estabelecendo prazo para outro órgão. O que eu diria é que há um problema constitucional, porque se fosse uma mera decisão política o Supremo não estaria legitimado. Qual é o problema constitucional? A representação política está distorcida por conta do dinheiro.

Mas aí teria que valer imediatamente...
Primeiro, a minha posição teórica: quem tem a última palavra é o Congresso. É o Congresso que tem que fazer isso. Mesmo o Supremo decidindo, o Congresso pode fazer depois. Não pode fazer a mesma coisa que a gente disse que é inconstitucional, mas pode fazer outra.

Mas se o Congresso não fizer algo, prevaleceria a validade imediata da inconstitucionalidade?
É isso, é isso.
Se se achar que o Congresso efetivamente vai fazer, não descartaria modular a própria questão do financiamento por pessoa jurídica para um momento posterior. Curto, mas posterior. Estou falando em tese. Vou ouvir os debates. A votação não acabou. Então alguém poderá me convencer de que talvez não seja bom aplicar isso nesta eleição [de 2014]. Se houver um comprometimento do Congresso -"olha, está aqui o que nós vamos fazer, mas é para logo"-, se for satisfatório, acho que pode ser uma alternativa.

O sr. poderia reformar o seu voto no final?
Poderia, na questão da modulação.

Juízes no Brasil têm 60 dias de férias por ano. Sem contar os feriados prolongados, que são emendados. Qual é a sua opinião a respeito?
Eu não as tiro, é o período em que eu estudo, é o período em que eu escrevo. E mesmo no Supremo, que é por onde eu posso falar. Quer dizer, janeiro, para nós lá, não vai ser mês de recesso. Eu tenho 8 mil processos, a gente está correndo atrás do prejuízo.

Mas o que o sr. acha desse sistema que dá oficialmente aos juízes 60 dias de férias ao ano?
Tudo que não seja republicano, tudo que não seja igualitário, é problemático. A única observação que eu faria, que considero importante, é que um juiz não trabalha só quando está ali na frente das câmeras da TV Justiça, na quarta-feira à tarde, na quinta-feira à tarde, e na turma [de julgamento] na terça-feira à tarde. Asseguro que trabalho nas manhãs e trabalho nas segundas e nas sextas.
Eu considero que tudo que não seja republicano é indesejável, e portanto se todas as categorias têm um mês [de férias], eu acho que os juízes deveriam ter um mês também. Se você quer minha opinião, em tese, é esta.


com a Folha de S.Paulo